quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Eu sei, mas não devia.

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.


"A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olhar para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus, não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia, de guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quanto precisava tanto ser visto.

A gente acostuma andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, esnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias de água potável, à contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma  revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma."


Marina Colasanti - extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.


PS.: Agradeço ao @leocarnevalli pela referência e pelo puxão de orelha!

2 comentários:

  1. Puxão de orelha - tem q colocar a referência. No caso - Marina Colasanti - extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09

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  2. Belíssimo trecho!

    Lembra-me "A exceção e a regra", do Brecht:
    "Estranhem o que não for estranho.
    Tomem por inexplicável o habitual.
    Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
    Tratem de achar um remédio para o abuso.
    Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra."

    ps: antes que se assute: não faço ideia de quem você seja, Thiago (e creio que o reverso também seja verídico). Fucei seu twitter depois de ver seu comentário ao @ConselhosDoRei e fiquei curiosa ao ver que somos colegas de profissão (na verdade eu ainda aspiro por uma, sou estudante de biologia apenas)...
    Gostei muito do texto! Mas o livro como um todo é bom?

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